Há uma pressão silenciosa que aparece assim que começamos a gostar de alguém. Uma espécie de manual não escrito que sugere que certas versões de nós devem ser arrumadas, dobradas com cuidado e guardadas numa prateleira alta. O “eu solteiro”; espontâneo, ligeiramente egoísta, cheio de manias e horários estranhos; passa rapidamente a ser visto como algo inconveniente, quase embaraçoso. E eu não pude deixar de me perguntar: para estarmos num relacionamento, devemos nós guardar o nosso “eu solteiro” no armário?
Porque há coisas que fazemos sozinhos que parecem não caber bem numa relação. Sair sem aviso, desaparecer uma noite inteira, gostar de silêncio mais do que de explicações, tomar decisões sem negociar. De repente, tudo isso ganha o rótulo de imaturidade. Como se o amor fosse uma versão editada de nós mesmos, mais polida, mais aceitável, mais fácil de apresentar aos outros.
E, num piscar de olhos, começamos a autocorrigir-nos. Não porque alguém peça, mas porque aprendemos a antecipar o desconforto alheio. Evitamos certos impulsos, moderamos opiniões, trocamos vontades por harmonia. Chamamos-lhe compromisso, mas há dias em que isso soa mais a uma versão bem-disfarçada de abdicação.
O problema é que aquilo a que chamamos o “eu solteiro” nunca foi só uma fase descartável. Foi ali que aprendemos a estar connosco, a ocupar espaço, a falhar sem testemunhas. Foi ali que nos conhecemos sem tradução. Guardar isso num armário pode parecer prático, mas deixa sempre um cheiro a coisa mal resolvida.
O mais irónico é que muitas relações começam exatamente porque alguém se apaixonou por essa versão livre, intensa e um pouco caótica. E depois, com o tempo, essa mesma versão passa a ser tratada como excesso, como ruído, como algo que precisa de ser suavizado para a relação funcionar. E eu não pude deixar de me perguntar quando é que aquilo que nos uniu se tornou aquilo que tínhamos de esconder.
Claro que amar alguém implica ajuste. Ninguém entra numa vida a dois sem mexer na disposição dos móveis. Mas há uma diferença entre mudar a casa e mudar de identidade. Entre crescer com alguém e diminuir para caber. Porque tudo o que fica demasiado tempo guardado acaba por querer sair; nem que seja sob a forma de ressentimento.
E, num piscar de olhos, percebemos que talvez a verdadeira maturidade num relacionamento não esteja em saber abdicar, mas em saber integrar. Não em apagar o “eu solteiro”, mas em deixá-lo respirar dentro do “nós”. Porque um amor que só funciona à custa do silêncio pessoal nunca será equilíbrio; será apenas medo bem educado.
No fim, volto à pergunta inicial, não porque tenha uma resposta clara, mas porque ela continua a ecoar: para amar alguém, temos mesmo de nos perder um pouco?
Sem a mínima dúvida, não. Não devemos guardar o nosso “eu solteiro” no armário como se fosse uma peça fora de estação. Aquilo que somos não é um rascunho à espera de ser corrigido por outra pessoa. Entrar num relacionamento não devia significar uma revisão de personalidade nem edição de comportamentos para agradar. Devia significar continuidade.
O nosso par não é uma modificação: é uma adição. Não vem substituir partes de nós, vem somar. Não vem podar aquilo que já existia, vem crescer ao lado. Tudo o que éramos antes do amor não desaparece quando o ele chega; apenas ganha contexto, ganha companhia, ganha outra voz na conversa.
Porque quando temos de nos alterar para caber numa relação, o problema nunca foi o nosso “eu solteiro”. Foi o espaço que nos deram. E talvez o verdadeiro luxo emocional não seja amar alguém, mas conseguir fazê-lo sem deixar nada essencial de nós para trás.
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