Eu não sei escrever prosa.

 Não sei escrever prosa. Não decentemente, como exigem a academia e o leitor. O verso é o que melhor se adequa ao processo narrativo corrente: são imagens turvas, não fotografadas. São pinturas em 'a fresco', não cabem em tela alguma. São cores e formas vistas apenas de modo periférico, jamais sujeitas a "sujeito" algum; gramática ou espiritualmente falando. Seria adultério pôr o metro cadenciado em parágrafo corrido, apressado. Seria prostituição. Por vezes julgo ouvir mais de um eu-lírico, se enfiando por entre o espaçamento das letras, ao fim de cada pontuação.

 - Julga, não. Não sou réu para ser julgado. Declaro-me inocente de toda e qualquer acusação. O culpado és tu.

 Perdão? Não foste convidado, amigo. Peço que se retire. Estou tentando escrever.

- Escrever? Poupe-me, é o décimo rascunho consecutivo. Vindo aqui eu te faço um favor, adicionando um pouco de diálogo aos monólogos insuportáveis. Além do mais, sou o único na sala interessado. Estou errado?

 "Interesse" nunca foi do meu feitio. Ser desinteressante é a moda do momento. Só assim que os outros vão se interessar.

 - Disse o Sr. Interesse Nunca Foi do Meu Feitio. Estilize-me, vamos. Cansa estar na mesma fonte que você, quase me faz lembrar que existo. E isso me deprime...

 O que achas de um negrito?

- Grosseiro demais. Parece que estou gritando ou urrando... Vou ficar rouco desse jeito.

 Itálico?

- Basta. É fino, elegante e não ocupa tanto espaço.

 Perfeito... uh, onde estávamos?

- Egotismo literário.

Ah, sim. Veja, desde a ascensão do modernismo como expressão, o que está em voga é ser cru, rude, agreste. Sem mais decôro, regras e afins. O que vale agora é ser avant-garde, e mais, é impres-

 - Algo não está certo...

- Como assim? Quem terminou meu parágrafo antes de mim? Eu sou o escritor aqui!

- Diga isso para o "-" à frente das palavras.

- O QUÊ?!

- Bem-vindo, vizinho! Primeira vez como personagem? O salário não é lá essas coisas, já aviso...

- ISSO É LOUCURA! Eu não posso ser um mero figurante no meu próprio texto! Quem está escrevendo esta porcaria?

 Eu.

- Legal, legal. Agora somos três... Já aviso que não vou dividir a cama com NENHUM de vocês.

- "Eu"? Como assim? Que m$*%@ é essa?

 Opa, opa, opa. Calma lá, colega. Sem palavrão por aqui. A editora vetou qualquer linguagem que pudesse afastar o público geral, incluindo crianças.

- Pessoal, eu fiz um verso, querem ler?

- Isso é sacanagem, 'tão de goz4%@$ comi- AH, NEM ISSO EU POSSO FALAR? C4%*@$#!!!

- "A bela flor, de pétalas vivas e doce aroma..."

 É sua segunda advertência. Mais uma e eu terei de escrever uma morte trágica, injusta e detestada por todos os fãs da trilogia.

- Trilogia? Morte? ISTO AQUI ERA PARA SER UM MONÓLOGO, SEU IGNÓBIL. Era para ser um texto curto de no máximo dois parágrafos sobre como é um fardo ser um escritor, sobre como a arte não é apreciada e... quer saber, f0%&*@.

- "Atrai abelhas e amáveis beija-flores..."

 Olha, eu só estou seguindo o roteiro que deixaram na mesa, não é nada pessoal, cara. Meu turno acaba em quinze minutos então, não dificulta, ok? Vamos lá, seu fim no livro será... hm...

- Roteiro? Eu não escrevi roteiro nenhum, está assinado no nome de quem?

Ok, achei uma postagem na internet falando sobre como você é o pior personagem da narrativa e que, abre aspas: "deveria ser atingido por mil flechas envenenadas"... Cara, eles realmente te odeiam!

- "E nasce o sol, aurora que condiciona..."

- Eles? Ok, isso é esquizofrenia demais, até para mim. Faça-me o favor de excluir essa tosquice, amanhã de manhã eu escrevo algo decente.

NÃO.

- Deixa de ser babaca.

Cara... não fui eu quem escreveu isso.

- Oi?

- "Toda a flora em sorrisos e esplendores..."

CALADO.

- Mais um louco para o bando...

Deve ser o revisor geral. Ele é meio estranho mesmo.

- "Vai cantando, contente e pronta"

- ELE PODE CENSURAR O TEXTO?

É o que um revisor geral faz... Eu acho.

- Eu devo ter me drogado antes de começar a escrever, só pode...

- EI, MEU POEMA, SEU RETARDADO! E que risco é esse no meu texto?

NOTA: A palavra "retardado" não tem a intenção de expressar repúdio ou de discriminar quaisquer indivíduos portadores de deficiências físicas ou mentais.

- Outro revisor geral?

Pois é. O editor-chefe achou que simplesmente censurar cada problemática seria custoso demais para o orçamento, teriam que contratar muitos revisores... aí contrataram só dois. Um é um macaco e outro é um chato...

NOTA: A palavra "macaco" refere-se ao animal, qualquer outra interpretação ou alegação é passível de processos e trâmites legais.

- Então é LITERALMENTE um primata que revisa a porcaria do texto?

- Ei, revisor: banana.

BANANA.

- ... Então, "narrador", qual o fim da história?

BANANA.

Isso não foi especificado no roteiro que eu recebi... Ei, não era você o autor? Você sabe como termina. Ao menos, deveria.

BANANA. BANANA. BANANA.

- Sendo sincero, não faço mais a menor ideia do intuito original disso tudo. Era para ser um desabafo, depois uma piada, agora nem sei mais. Sinto que me perdi em tantas vozes diferentes, tantas camadas e ações. Não tem mais graça, sabe? Todos os tropos já foram utilizados antes, até mesmo a ironia se tornou pós-ironia; tudo pode ser lido nas entrelinhas, tudo exige complexidade, subtexto e

BANANA.

Banana. Interessante escolha de palavras...

- Ele vai ficar repetindo "BANANA" o tempo todo?

Dá um desconto, cortaram o horário de almoço dele. O coitado nem ler sabe...

NOTA: Nós, da Editora Ltda., oferecemos almoço, salários mínimos e não atentamos contra nenhum direito humano, animal ou metafísico. Em caso de queixa, favor não queixar.

- Chato. Vou voltar a recitar meus versos...

- Ok, já deu. Vou finalizar o texto.

Como? Quem narra e é munido de onipotência narrativa aqui sou eu, lembra? E mesmo que eu quisesse, não poderia acabar assim com a história. Me obrigaram a escrever pelo menos mais dez piadas; dois romances e pelo menos três finais abertos nos próximos volumes para incitar fanfics e afins.

NOTA: "Obrigar" aqui, signifca "sugerir". Nós, da Editora Ltda., damos total liberdade criativa para toda a nossa mão de ob- [PARA TODAS AS NOSSAS MENTES INVENTIVAS E INSUBSTITUÍVEIS]

- "A gata bebe o leite sobre a lua..."

- ATENÇÃO, LEITOR, QUEM MORRE NO FIM DA HISTÓRIA É O...

F                                                                    I                                                                             M.


NOTA: Nós, da Editora Ltda. asseguramos, garantimos e confirmamos que nenhum macaco foi ferido ou tornado isento de suas bananas durante a duração deste teorema infinito.





6 Kudos

Comments

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not_ian

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você tem uma escrita maravilhosa, estou impressionado. mas por gentileza, me tire uma dúvida: o décimo-terceiro dos macacos seriam mais bananas? ou eles não participam do regime trabalhista?
pergunta sincera.


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Normalmente são dólares. Mas os macacos não sabem muito bem como usá-los. Acho que nunca lhes contaram que com dinheiro eles poderiam comprar suas próprias bananas. Para a editora, é melhor que permaneça assim.

by 𝕻𝖗𝖎𝖘 ☦; ; Report

🦇 𝙰𝚔𝚊𝚜𝚑𝚊

🦇 𝙰𝚔𝚊𝚜𝚑𝚊's profile picture

absolute prosa.


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