Olhos d'água - P3

Lumbiá


Lumbiá trocou rapidamente a lata de amendoim pela caixa de chicletes com a irmã Beba. Fazia um bom tempo que estava andando para lá e para cá, e não havia conseguido vender nada. Quem sabe teria mais sorte se oferecesse chicletes? E, se não desse certo também, procuraria o colega Gunga. Juntos poderiam vender flores. A mãe não gostava daquela espécie de mercadoria. Dizia que flor encalhada era prejuízo certo. Sempre amanheciam murchas. Amendoim e chicletes não.

Lumbiá gostava da florida mercadoria em seus braços. Tinha até um estilo próprio de venda. Ficava observando os casais. O momento propício. Lumbiá ficava por perto olhando de soslaio para a mulher. E, quando notava que ela estava toda mole e o homem derretido, o menino se punha quase entre os dois, com a flor em riste, impondo a mercadoria. O caliente namorado enfiava a mão no bolso, tirava o dinheiro e pegava a rosa. Às vezes, tão distraído no beija-beija estava o casal que a rosa não era colhida das mãos do menino. Lumbiá tinha ainda outros truques. Sabia chorar, quando queria. Sempre começava chorando por safadeza, mas, em meio às lágrimas ensaiadas, o choro real  se confundia. Nas histórias, que inventava nos momentos de choro para comover as pessoas, tinha sempre uma dissimulada verdade. Um dado real da vida dele ou do amigo Gunga se confundia com a invenção do menino. E, enquanto chorava o pranto ensaiado para comover os compradores, contava ora sobre a surra que havia levado da mãe, ora sobre a mercadoria que estava ficando encalhada, ou, ainda, sobre o dinheiro, fruto de seu trabalho, que tinha sido tomado por um menino maior... E aos poucos, em meio às verdades-mentiras que tinha inventado, Lumbiá ia se descobrindo realmente triste, profundamente magoado, atormentado em seu peito-coração menino.


Havia, porém, uma ocasião em que nada ameaçava os dias felizes do menino: o advento do Natal. A cidade se enfeitava com luzes que brotavam de todos os cantos. Entretanto, não era esse pirotécnico espetáculo que seduzia Lumbiá. Nem o personagem Papai Noel gordo. Só havia uma coisa de que o menino gostava no Natal. O presépio com a imagem de Deus-menino. Todos os anos, desde pequeno, em suas andanças pela cidade com a mãe e mais tarde sozinho, buscava de loja em loja, de igreja em igreja, a cena natalina. Gostava da família, da pobreza de todos, parecia a sua. A casinha simples e a caminha de palha do Deus-menino, pobre; só faltava ser negro como ele. Lumbiá ficava extasiado olhando o presépio, buscando e encontrando o Deus-menino.

Houve um ano em que uma notícia correu: a loja Casarão Iluminado, uma tradicional casa especializada em vendas de luminárias, ia armar um presépio no interior da loja. Seria o maior e o mais bonito da cidade. E foi. Toda a cidade comentava a beleza e a semelhança do presépio com a cena bíblica que narra o nascimento de Jesus. Lumbiá atento ouvia todos os comentários e aguardava a oportunidade de visitar a Belém instalada no interior da loja Casarão Iluminado. Havia, entretanto, um problema. Estava proibida a entrada de crianças sozinhas e para ele era quase impossível esperar pelo dia em que a mãe pudesse levá-lo, acompanhá-lo até lá. Enquanto isso, o tempo corria. Lumbiá já tinha visto todos os presépios das redondezas. Em cada um seu coração batia descompassadamente quando fitava o Deus-menino.

O dia caminhava para seis da tarde, vinte e três de dezembro. O menino aguardava ali desde as nove da manhã. Em sua viagem costumeira do subúrbio para o centro da cidade, se distanciou de Gunga e da irmã. Fazia frio, muito frio, era um dia chuvoso. Tinha a roupa colada sobre o frágil corpo a tremer de febre. A loja já estava para fechar. 


Ia arriscar novamente. Em dado momento aproximou-se devagar. Ninguém na porta. Pisou leve e, apressado, entrou. Lá estava o Deus-menino de braços abertos. Nu, pobre, vazio e friorento como ele. Lumbiá olhava. De braços abertos, o Deus-menino pedia por ele. Erê queria sair dali. Lumbiá tocou na imagem, à sua semelhança. Deus-menino! Tomou-a rapidamente em seus braços. Chorava e ria. Era seu. Saiu da loja levando o Deus-menino. O segurança voltou, tentou agarrar Lumbiá. O menino escorregou ágil, pulando na rua. O sinal! O carro! Lumbiá! Pivete! Criança! Erê, Jesus Menino. Amassados, massacrados, quebrados! Deus-menino, Lumbiá morreu!


Os amores de Kimbá


Kimbá acordou às cinco e quarenta e nove da manhã. Levantou rápido da cama e olhou o tempo. Um dia ensolarado prometia acontecer. Sentiu-se mais aliviado. Detestava chuva. Chuva na favela era um inferno. O barro e a bosta se confundiam. As crianças e os cachorros se comprimiam dentro de casa. As mães passavam o dia inteiro gritando para que os Zezinhos sossegassem. Antes, ele fora também Zezinho. Kimbá foi o apelido que um amigo rico, viajado por outras terras, lhe dera. O amigo notou a semelhança dele com alguém que ele havia deixado na Nigéria. Então, para matar as saudades que sentia do amigo africano, rebatizou Zezinho com o nome do outro. Levantou, e de pé sentiu melhor o seu corpo. Era alto. Espichando o braço, ultrapassava o telhado. Ficou uns segundos gozando o prazer que seu tamanho lhe dava. Sabia-se alto. Sabia-se forte. Sabia-se bonito. As mulheres gostavam dele e os homens também. Aliás, foi uma descoberta que lhe assustou muito. 

Kimbá desceu um por um os degraus da escadaria da ladeira. Cá embaixo, sentiu dor e alívio. Tinha conseguido sair do barraco. Deixar tudo para trás. Todos os dias pensava que não conseguiria. Detestava a pobreza, a falta de conforto, a fossa exalando o cheiro de merda. As irmãs viviam perguntando tudo. Aonde ele ia? De onde ele vinha? Com quem ele saía? Perguntavam tudo em silêncio. Ele detestava também ter de ser dois, três, vários talvez. Dava trabalho mudar o rosto, o corpo, mudar até o gosto. Seria tão bom se ele pudesse ser só ele. Mas o que era ser ele?


Beth gostava dele e ele estava gostando também da mulher. Foi o amigo que lhe batizara com o nome africano que fizera as apresentações. Na noite em que se conheceram, tinha acontecido um encontro bom, gostoso e cheio de safadezas. Os dois, ele e o amigo, tinham ido à casa de Beth. O amigo falava sempre dela. Estavam bebendo na sala, quando a mulher se levantou, pediu licença e foi ao banheiro. Voltou logo após, nua. Kimbá estava louco também. Tinha vergonha e desejos por todo o corpo. 

O amigo veio caminhando lentamente em sua direção. Abriu a camisa e a calça dele beijando-lhe avidamente o membro ereto. Kimbá esqueceu o outro, esqueceu de si próprio e se lançou dentro da mulher. Quando se percebeu novamente, estavam os três deitados no chão. O homem calmo, satisfeito como ele e a mulher. E, só então, se viu e sentiu nu. Queria se vestir, porém. E agora, como caminhar na frente dos dois? Queria se levantar e não sabia como. O amigo e a mulher se levantaram por ele e se encaminharam para o banheiro. Quando voltaram, Kimbá estava de pé, vestido no meio da sala. Queria ir embora, já era tarde. Precisava subir o morro. Os dois insistiram para que ele ficasse. Não, não podia ficar mesmo.

Kimbá saiu daquele encontro de corpo leve. Não sabia, porém, se estava feliz ou infeliz. Já tinha ouvido falar de pessoas que transavam juntas, mas pensava que fosse caso de cinema. Não sabia por que tinha feito aquilo. A mulher tinha um corpo bonito. Cheirava a perfumes e a sabonete. E o amigo? O que deu no amigo? Quando pensou que o amigo fosse penetrar na mulher, eis que o homem se levanta, vai atrás dele. Será que o amigo era? Será que era? E agora, o que ele ia fazer? Gostava tanto dele. Quando Kimbá empurrou a porta do barraco em que morava, já era madrugada alta, quase manhã. Sentiu em seu próprio corpo o cheiro da mulher. Vestiu o calção e foi lá fora no tanque. Veio para a cama. Segunda-feira, o dia já rompia. Kimbá não conseguiu dormir. Nas horas seguintes, não se levantou. Não desceu o morro. Não foi ao supermercado trabalhar.


Beth possuía Kimbá querendo ter certeza de que o homem era seu. Sabia dele com Gustavo; aliás, o conhecera por meio dele. Havia muito que o amigo nutria uma paixão, um desejo intenso por Kimbá, mas não tinha tido a coragem de abordá-lo. No dia em que Gustavo falou que ia apresentá-la a um negro lindo, Beth não se entusiasmou. Estava cansada dos exageros dele. Mas com poucos encontros, no primeiro talvez, ficara apaixonada. Não podia esquecer que entre ela e Gustavo havia um acordo tácito. Nada de ciúmes, nada de disputa entre os dois. Mas com Kimbá estava sendo diferente. Não suportava pensar nele deitado recebendo e dando carinhos a alguém que não fosse ela.

Kimbá jogou água e sabão no chão esfregando violentamente a sujeira como se estivesse com raiva. Estava mesmo. Estava cansado do dia a dia no supermercado e da noite a noite com Beth e o amigo. Não aguentava mais. Ou era o amigo ou era Beth. Eles lhe dariam tudo, caso ele quisesse. Tanto um como o outro já lhe haviam feito a proposta, para que ele deixasse de trabalhar e fosse morar em casas deles. Era tentador. Deixar a favela. Deixar a miséria. Deixar a família. 

Kimbá estava gostando de Beth. Tinha vergonha desse sentimento. Não sabia como ajeitar a mulher dentro e fora do peito. Não poderia dizer para ninguém, muito menos para Gustavo. O amigo levava tudo na brincadeira. Até a amizade dos dois parecia uma brincadeira. Não seria ele que iria estragar tudo dizendo que estava gostando da moça. Havia o pior ainda. Ela era de um mundo que diziam não ser o dele. Gustavo também era das "altas", como dizia ele próprio às vezes, quando se referia às desavenças que tinha com os pais. Ele não podia esquecer isso. Tinha de transar no meio dos dois e ter cuidado, muito cuidado.


O amigo de Kimbá tinha certeza de que o homem não era seu. Sabia dele com Beth. Kimbá ficava com ele por amizade ou interesse talvez. Sabia que, se ele tivesse de fazer uma escolha, optaria pela mulher. Sentiu um misto de ciúmes e mágoa. Afinal tinha sido ele que havia apresentado Kimbá para a amiga. Sabia também que não era justo ficar magoado com ela e com Kimbá muito menos. Nenhum dos três tinha previsto sentimentos que pudessem mudar a situação. E agora o que fazer? Que rumos tomar ou dar àquilo tudo? Como falar com Kimbá? 

Kimbá caminhava firme em direção à casa de Beth. Sabia que ela e Gustavo esperavam por ele. Tinham combinado tudo na noite anterior. Tinham colocado o dedo na ferida. Beth estava apaixonada por ele. Ele estava apaixonado por Beth. O amigo estava apaixonado por ele. Estavam tentando viver. Beth tinha dinheiro. O amigo, dinheiro e fama. Kimbá, a noite e o dia. A decisão seria, portanto, de Kimbá, que não tinha nada a perder. Só a vida. Era só ele querer. Já que não estava dando para viver, por que não procurar a morte? Seria fácil. Primeiro Beth, depois o amigo e em seguida ele. A morte selaria o pacto de amor entre eles. A morte pelo amor dos três.


Ao acordar às cinco e quarenta e nove da manhã, Kimbá já tinha a vida acertada. Ele sabia que o seu dia estava rompendo. Seria preciso coragem, muita coragem. Kimbá caminhava firme, estava chegando. Parou na porta do prédio olhando tudo. Sorriu para o porteiro. O elevador demorou. Subiu a pé até ao nono andar. Beth e o amigo já esperavam por ele. Estavam os dois nus. Kimbá tirou lentamente a roupa e se sentou. Os copos já estavam preparados. Ele, com um ligeiro tremor de mãos, ofereceu o primeiro copo à mulher. O segundo ofertou ao amigo. Ao pegar o terceiro copo, o dele, teve um breve desejo de recuo. Beth e Gustavo já estavam deitados no chão à espera de mais nada. Kimba procurou algum motivo de vida. Os amigos estavam na quase morte. Sorveu de uma única vez a sua porção e se deitou ali no meio, para esperar com eles também.



Ei, Ardoca!


O barulhar seco e cortante do trem irritava os ouvidos de Ardoca. O atrito da máquina nos trilhos ecoava constantemente no fundo de seus tímpanos. Aos domingos, dentro de casa, no silêncio da mulher, nas vozes e brincadeiras dos filhos, ele ouvia o grito arranhado do aço espichado sobre o solo. Ardoca nascera quase que dentro daquela máquina. Sua mãe, moradora do subúrbio, fazia a viagem diária rumo ao trabalho.

Ela grávida, ele estufando na barriga materna respondia aos solavancos do trem com chutes internos. Depois, cá fora, no mundo, no colo da mãe, acordava e chorava durante todo o tempo da viagem. Queria viajar com o mesmo descuido de alguns que dormiam durante o percurso, mas permanecia sempre desesperadamente acordado. Estava sempre atento, tenso, como se o trem, a qualquer momento, pudesse autocolidir fazendo com que o último vagão se fechasse em círculo sobre o primeiro e soltasse tudo pelos ares.

E foi então que, em uma tarde, Ardoca caminhou com passos lentos em direção à estação. Era sábado. O movimento menor de passageiros não garantiu, porém, a possibilidade de um lugar vazio. Entrou na fila para a compra do bilhete. O funcionário deu-lhe o troco.

Ardoca com um gesto recusou. Olhou o trem, a composição pareceu-lhe mais longa ainda. Subiu com dificuldades, encostou-se à parede do vagão e depois lentamente foi escorregando o corpo até chegar ao chão. Alguém gritou que o homem estava bêbado. O trem continuava parado, mas a barulheira sobre os trilhos alcançava e feria os ouvidos de Ardoca. Um grupo de crentes cantava olhando para ele como se quisesse comovê-lo. Ardoca abandonava o corpo, que pendia lentamente para um lado. Um camelô que vendia água pulou por cima dele para atender uma pessoa. Ardoca respirava com dificuldade, debaixo do negro de sua pele, um tom amarelo desbotado aparecia. Uma mulher levantou, comprou um copo d'água e deu-lhe de beber, tentando reanimá-lo. 

Enquanto isso, sua vida ia se aprofundando mais e mais no dissentir de tudo. Ele buscava a respiração lá no fundo. A mulher que lhe socorreu parecia querer chorar. Neste momento entrou no vagão um passageiro correndo e gritando. Desesperado, empurrou as pessoas buscando passagem em direção ao rapaz desfalecido, chamando por ele:

— Ei, Ardoca! Ei, Ardoca!


Rapidamente o tomou no colo, desceu do trem e o depositou no banco da estação. Aquele que o socorrera estava a meter a mão nos bolsos de Ardoca e a arrancar-lhe os sapatos e o relógio que ele trazia no pulso. Ardoca estava sendo assaltado. A mulher fez menção de descer, mas a máquina ganhou velocidade e partiu. Não era preciso, porém, nem dor, nem lágrimas. O outro podia levar os poucos pertences de Ardoca. Podia tomar-lhe tudo. Ardoca não tinha mais nada, nem a vida. Naquela tarde, ainda no trabalho, ele resolvera tudo. Num gesto desesperado e solitário bebera lentamente um veneno e decidira levantar para morrer no trem. O outro levava os pertences de alguém que já despertencia à vida e jazia no banco da estação.

O barulho da máquina sobre os trilhos entoava uma música réquiem de descanso eterno para Ardoca. Amém.


(to terminando gente calma)


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