Olhos d'água - P2

Beijo na face


Salinda tombou suavemente o rosto e com as mãos em concha colheu, pela milésima vez, a sensação impregnada do beijo em sua face. Tudo parecia um sonho. Ela estava aprendendo um novo amor. No princípio, a aprendizagem lhe custará muito. Acostumada ao amor em que tudo ou quase tudo pode ser gritado, exibido aos quatros ventos, Salinda perdeu o chão. Habituada ao amor que pede e permite testemunhas até na horas do desamor. E por que não gritar, não expor a grandeza do sentimental. 

Salinda tentou guardar em si as lembranças e retomar a rotina. Era preciso viver com a calma e o desespero como se nada estivesse acontecendo. Havia quase um ano que a felicidade lhe era servida com conta-gota. Mesmo estando entupida de alegria, ela precisava embrutecer o corpo. Estava sendo observada em todos os seus movimentos. A vigilância sobre os seus passos pretendia abarcar até seus pensamentos. Ela que era sempre distraída teve que aprender a prestar atenção em tudo e a todos. A mulher ou homem que estivesse particular que o seu marido tinha contratado para segui-lá. Ao se lembrar do marido, ela foi até o quarto desfazer a mala, que estava ali abandonada desde de manhã. Tinha ido até Chã de Alegria, deixar as crianças de férias com a tia. Era para aquela cidade que viajava sempre com os filhos. Além da ida ao trabalho, Salinda não podia sair só. Ela confirmou que estava sendo observada quando seu marido, uma noite, falava alto na sala ao lado, pedindo notícias sobre todos os passos dela. Estava a vigiá-la, mas em vez de agir em silêncio, vinha de própria voz alertá-la. Era como se ele buscasse retardar um encontro com a verdade.

Aos poucos, as ameaças feitas pelo marido foram surgindo, tais como: tomar as crianças, matá-la ou suicidar-se deixando uma carta culpando-a.  Aprendera, desde então, certas artimanhas, sondava terreno, procurava saídas. Aos poucos, foi se fortalecendo, criando defesas, garantindo pelo menos o seu espaço íntimo. Tia Vandu, em Chã de Alegria, foi a única pessoa que adivinhou o sofrimento dela, acolheu seu segredo e se tornou cúmplice. Era na casa da tia que os encontros aconteciam. De noite, depois das crianças dormirem, ela, no quarto, podia se dar, receber, se ter e ser para ela mesma e para mais alguém. Tia Vandu era a guardiã do novo secreto amor de Salinda.

Ela desfazia a mala relembrando do seu regresso de Chã de Alegria. Voltava para casa trazendo lembranças entalhadas na memória. Havia dois tempos na vida de Salinda: um tempo em que o marido estava envolvido e cada vez mais se diluía e o tempo em que o novo amor se solidificou. Dai a uns minutos, o homem chegaria, poderia vir calmo, amigo como nos bons tempos de namoro e ainda durante alguns anos de casada. Sim, tinha sido ele, o lugar do cálido amor de adolescente. Foi ele a primeira pessoa que a tornou apta e ávida para todos os demais amores que ela veio a ter. Vinha então com perguntas de sempre: o que fizera durante os anos em que terminaram o namoro? Quem era o homem pai da primeira filha dela? Por que, depois de tanto tempo afastada, ela aceitou voltar e se casar com ele? E assim, aos poucos, Salinda foi percebendo que nunca deveria ter assumido novamente uma relação com ele. 

A mala ia sendo desfeita lentamente enquanto tempos distintos amalgamavam-se em suas lembranças. A imagem dos filhos voltou à sua mente. Estavam de férias, e a melhor companhia para eles era a Tia Vandu. A ausência de qualquer som transportou-a novamente para os poucos dias vividos em Chã de Alegria. No dia anterior, tinha levantado cedo, guardando no rosto e no corpo as marcas do encontro vivido na noite. Feliz, cantou, soltou a voz pelas terras de Chã de Alegria.  Distraída em desarrumar a mala e em reviver várias lembranças, Salinda não percebeu o avançar das horas. Quando deu por si, já era noite.  Ela, admirada, gostou. Depois de longos anos, ia poder ficar sozinha. Havia uns cinco anos, desde que ele desconfiou dela com um colega de trabalho, um inferno na relação dos dois havia se instaurado.

Mas por que o marido estava demorando tanto? Ela começava a se atormentar. O que estava por trás daquela ausência tão silenciosa? E sua vida secreta? Será que o segredo havia sido descoberto de alguma forma? Salinda tinha viajado com as crianças. Sair com os filhos não levantava suspeição alguma. E, quando qualquer desconfiança acontecia, o marido aplicava as suas táticas interrogativas. As crianças eram conclamadas a falar exaustivamente sobre o passeio. Inocentemente narravam tudo, felizes por estarem conversando com o pai. Salinda se lembrou das ameaças do marido. Levantou aflita procurando os cigarros. Buscou uma caixa de fósforos que deixou cair no chão. O ligeiro barulho da caixa caindo no solo retumbou como uma bomba atômica, e Chã de Alegria se desenhou em sua mente.

Tinha ido ao circo com as crianças em um dos dias que ficara na casa da tia. Salinda saiu vitoriosa do circo. O telefone tocou. Sabia que era ele. Do outro lado do fio, com uma voz forçosamente calma, o marido anunciou que já sabia de tudo. Perguntou se ela havia esquecido que os olhos da noite podem não ser somente estrelas. Outros olhos existem; humanos vigiam. E riu debochando do descuido dela e da tia. Disse ainda que não queria vê-la nunca mais, mas era bom ela ir se preparando para uma guerra. Não ia matá-la, nem cometer suicídio. Mas ia disputar os filhos. Ele queria  os filhos, todos. Salinda recebeu o golpe com a cabeça erguida. Sua voz não podia demonstrar nenhum temor. Batalhas viriam, piores, mais cruéis que as anteriores. Sentiu, porém, certo alívio. A verdade tinha sido apresentada, por pior que fosse a dor.

O que fazer? Que cuidados e providências tomar no momento? A quem recorrer? E as crianças? Não, ela não ia desistir delas. Tentando se equilibrar sobre a dor e o susto, Salinda contemplou-se no espelho. Sabia que ali encontraria a sua igual, bastava o gesto contemplativo de si mesma. E, no lugar de sua face, viu a da outra. Do outro lado, como se verdade fosse, o nítido rosto da amiga surgiu para afirmar a força de um amor entre duas iguais. Mulheres, ambas pareciam. Altas, negras e com dezenas de dreads a lhe enfeitar a cabeça. Ambas aves fêmeas, ousadas mergulhadoras na própria profundeza. E a cada vez que uma mergulhava na outra, o suave encontro de suas fendas-mulheres engravidava as duas de prazer. E o que parecia pouco, muito se tornava. O que finiro era, se eternizava. Um leve e fugaz beijo na face, sombra rasurada de uma asa amarela de borboleta, se tornava uma certeza, uma presença incrustada nos poros da pele e da memória.


Luamanda


Luamanda consertou o vestido no corpo observando por alguns instantes o colo e o pescoço. Não, a sua pele não denunciava as quase cinco décadas que já havia vivido. As marcas no rosto, poucas, mesmo quando observadas de perto mentiam descaradamente sobre a sua idade. Nunca ninguém havia lhe dado mais de quatro décadas de vida. Um dia o lance mais alto que ela orgulhosamente aceitara fora de 35 anos. Sorriu ao ouvir a oferta. É, estava inteirinha, apesar de tantos trambolhões e acidentes de percurso em sua vida-estrada. 

Levava a mão ao peito e sentia a pulsação da vida desenfreada, louca. Tardio seria, ou mesmo haveria um tempo em que as necessidades do amor seriam todas saciadas? Ela iniciara cedo na busca, menina, muito menina ainda. Lembrava-se da primeira paixão. Sentimento esquivo, onde se misturavam revistas em quadrinhos, giz colorido, partilha de pão com salame e um epílogo cruel dramatizado pela surra que levara da mãe. O amor dói? Ela desejou crescer. Ensaiava e experimentava sorrisos, acenos distantes, piscar de olhos, troca de desenhos, cartas mal-escritas borradas com os dedos trêmulos de amores platônicos, O amor é terra morta?

Um dia, aos treze anos, a cama do gozo foi arrumada em pleno terreno baldio. A lua espiava no céu denunciando com a sua luz um corpo confuso de uma quase menina, de uma quase mulher. Um menino que se fazia homem ali, a inaugurar em Luamanda o primeiro jorro, fora de suas próprias masturbantes mãos. E ambos se lambuzavam festivamente um no corpo do outro. O gozo-dor entre suas pernas. O amor é terremoto?
Depois, em outro tempo, quando já acumulada de várias vivências, ela deparou-se com um homem que viria inaugurar novos ritos em seu corpo. Uma sensação estranha, algo como um jorro-d’água ou um tapa inesperado caiu sobre o rosto de Luamanda, ao avistá-lo pela primeira vez. Ele sorriu. Ela sentiu o sorriso desgrudando da face dele e mordendo lá dentro dela. Seu coração desgrudou e palpitou, embora a cara da lua nem estivesse escancarada no céu. Mas ela veio várias vezes. Vinha para demarcar o tempo grávido da mulher e expulsar os filhos: cinco. O amor é um poço misterioso onde se acumulam águas-lágrimas?

Depois, tempos depois, Luamanda experimentava o amor em braços semelhantes aos seus. Os bicos dos seios dela roçando em outros bicos. No primeiro instante, sentiu falta do encaixe do membro que completava. Num ato de esquecimento, sua mão procurou algo ereto. Encontrou um falo ausente. Mas estava tão úmida, tão aquosa que Luamanda sentiu coberta por pele, poros e pelos semelhantes aos seus, quando a sua igual dançou com leveza a dança-amor com ela. O amor se guarda só na ponta de um falo, ou nasce também dos lábios de um coração de uma mulher para outra?

Luamanda, um dia, também amazona, montada então sobre um jovem. O moço encantado por aquela mulher  que ele sabia madura, mas de imprecisa idade. O jovem amamentando-se no tempo vivido dela. Ela se realimentando, reencontrando sua juventude passada e encantada pela virilidade quase inocente dele. Era tão grande a juvenil força do moço a atravessar o corpo de Luamanda, que ensandecida quando ele estava lá embaixo no buraco-perna, ela pensava que o intumescido bastão dele boca afora. O amor não cabe em um corpo?

Tantos foram os amores na vida de Luamanda que sempre um chamava mais um. Entre encontros e desencontros, ela estava em franca aprendizagem. Uma aprendizagem no por dentro e fora do corpo. A cada amor vivido, Luamanda percebia que a lição encompridar, mas que ainda faltavam testes, arguições, sabatinas e que ela sabia só um pouquinho ou talvez nem soubesse nada ainda. Luamanda, avó, mãe, amiga, companheira, amante, alma-menina no tempo. Alma-menina no tempo? Não, ela não se envergonha de seu narcisismo. era com ele que ela compunha e recompunha toda a sua dignidade. Encarou novamente o espelho e se lembrou de um poema, em que uma mulher, contemplando a sua imagem refletida, perguntava angustiada onde é que ela deixara a sua outra face, a antiga, pois não se reconhecia naquela que lhe estava sendo apresentada naquele momento. Não, não era o caso de Luamanda, que se reconhecia e se descobria sempre. Pouquíssimos fios de cabelos brancos avançavam buscando criar um território próprio em sua cabeça. 

Escolheu esses fios, puxou-os querendo destacá-los entre os demais . Imaginou-se com os cabelos brancos sobre o rosto negro. Seria bela como a Velha Domingas lá das Gerais. Viajando no tempo-evento de sua vida, Luamanda, distraída, esqueceu-se do compromisso para o qual se preparava no momento. Acordou, para o encontro que estava por acontecer naquela noite, quando ouviu os assobios de alguém que aguardava por ela lá fora. Apressou-se. Podia ser que o amor já não suportasse um tempo de longa espera.


O cooper da cida


O sol vinha nascendo molhado na praia de Copacabana. A indecisão do tempo, o trabalho inconsequente, tudo isso comprometia o cooper da Cida. A moça foi diminuindo o passo. Ela era uma desportista natural. Corria o tempo todo querendo talvez vazar o minguado tempo do viver. Era preciso buscar sempre. O que tinha ficado para trás, o agora e o que estava para vir. De manhã, depois da corrida, ia à padaria, passava pela banca e trazia entre os dedos as notícias do dia que eram mal lidas. Rapidamente, graças ao curso de leitura dinâmica que fizera uns anos atrás, corria os olhos pelas manchetes tentando aprender os acontecimentos. Em casa, corria ao banho, ao quarto, à sala, à cozinha. Fervia o leite, arrumava a mesa, voltava ao quarto, avançava sobre o guarda-roupa e atracava-se ao uniforme de trabalho; logo depois já estava na sala fechando a porta e indo. Voava pelas escadas, pois o elevador era lento e no constante cooper ganhava a rua. Era preciso avançar sempre e sempre.

Ela era vencedora de outras distâncias. Já saltara montanhas e divisas de um tempo-espaço que ficará para trás. Como era mesmo a sua cidade natal? Lembrava-se de que as pessoas eram lentas. Viviam devagarzinho. A vida era de uma tal lerdeza. Cida desde pequena guardava um sentimento de urgência. Seu corpo aos nove anos maturou-se no sangue mensal de mulher. As suas brincadeiras prediletas eram apostar corrida com as crianças e a de desafiar grandes e pequenas, no tempo gasto para execução de qualquer tarefa. Vencia sempre, utilizando um tempo diminuto em relação a todos.

Aos onze, ela foi pela primeira vez ao Rio. A mãe reclamava da velocidade. Cida bebeu enlouquecida aquela rapidez, descobrindo no turbilhão da cidade sua essência. E naquele momento optou por retornar um dia para ficar ali. Tinham razão, a cidade era maravilhosa. Aos dezessete anos, um emprego arranjado por um tio permitiu que ela viesse para a capital. A vida seguia no ritmo acelerado do seu desejo. Trabalho, trabalho. A noite festejada por encontros de rápidos gozos. Os amores tinham de ser breves. Cursos somente aqueles que proporcionassem efeitos imediatos. 

O padre era lento também. Para não ficar com remorso inteiro, assistia somente metade da liturgia. Todas as manhãs, os pés de Cida pisavam rápido o calçadão da praia. Iam e vinham em toques e furtivos, como se estivessem envergonhados dos carinhos que o solo pudessem lhes insinuar. Corria contra ela própria. Mas, naquele dia, um sentimento de um desejo de querer parar a inundava. Sem perceber, permitiu uma lentidão aos seus passos, e pela primeira vez viu o mar. A princípio, experimentou uma profunda monotonia observando os movimentos repetidos e maníacos das ondas.Como a natureza repetia séculos os mesmos atos? Tão previsível como os principais atos dela.

Cida levou a mão ao peito. Lembrou-se que era uma mulher e não uma máquina desenfreada, louca. Ela abandonou o calçadão e encaminhou-se para a areia. Sentiu necessidade de arrancar os tênis que lhe prendiam os pés e deixou aquelas correntes abandonadas ali mesmo. Contemplou mais uma vez o mar. Ela desejou se lançar no mar à procura de algo que ela não encontrava cá fora. Cida lembrou que era preciso voltar para casa e continuar suas ações rotineiras. Às sete e quarenta e cinco, Pedro acionaria a buzina do carro em frente ao prédio dela. Pronta, desceria rapidamente a escada e eles aportariam no escritório. Em meio a esses pensamentos, Cida chegou à porta de seu prédio. Pedro fora de carro preparava-se para entrar e, ao deparar-se com ela bradou assustado olhando para a moça de cabeça aos pés: “O que aconteceu? Você precisa voar, está atrasadérrima”.

Ela já escutava tudo calada. Tinha a impressão de que ele falava como um locutor de partida de futebol. Pedro bradava e bradava. O tempo estava passando e ela continuava ali apalermada. O que estava acontecendo? Só então ela percebeu o motivo da aflição do amigo. Ela estava atrasada. Apenas demorara mais, muito mais do que o costume. Se distraída, esquecera das horas. Ele poderia ir, já estava bastante atrasado. Hoje ela não iria trabalhar, queria parar um pouco, não fazer nada de nada talvez. E só então falou uma expressão que tantas vezes escutara. Mas falou tão baixinho, como se fosse um momento único de uma misteriosa e profunda prece. Ela ia dar um tempo para ela.


Zaíta esqueceu de guardar os brinquedos


Zaíta espalhou as figurinhas no chão. Olhou demoradamente para cada uma delas. Faltava uma, a mais bonita, a que retratava uma garotinha carregando uma braçada de flores. Um doce perfume parecia exalar da figurinha ajudando a compor o minúsculo quadro.  A irmã de Zaíta há muito tempo desejava o desenho e vivia propondo uma troca. Ela não aceitava. A outra, com certeza, pensou Zaíta, havia apanhado a figurinha-flor. E agora? Como fazer? Não poderia falar com a mãe, pois sabia que daria em reclamação.

A mãe de Zaíta estava cansada. Tinha trinta e quatro anos e quatro filhos. Quando Benícia pensava que nem engravidaria mais vinheram as duas, gêmeas. Eram iguaizinhas. A diferença estava na maneira de falar: Zaíta falava baixo e lento, Naíta falava alto e rápido. Zaíta virou a caixa, e os brinquedos se esparramaram. Mexeu em tudo, sem se deter em brinquedo algum. Buscava a figurinha, embora soubesse que não encontraria ali. No dia anterior, havia recusado fazer a troca com a irmã mais uma vez. Brigaram. Ela chorou e de noite dormiu com a figurinha embaixo do travesseiro. De manhã, foram para escola. Como o quadrinho da menina-flor tinha sumido? 

Zaíta olhou os brinquedos largados no chão e se lembrou da recomendação da mãe. Ela ficava brava quando isso acontecia. Batia nas meninas, reclamava da vida pobre e principalmente do segundo filho. Um dia a menina viu o irmão com uma arma que ele havia pego debaixo da poltrona. A mãe recomendou o silêncio da menina. Zaíta percebeu que a voz da mãe tremia um pouco. Deixando essas memórias de lado, a menina se levantou e saiu, deixando os brinquedos espalhados. Ela estava pouco se importando com os tapas que pudesse receber. Queria apenas encontrar a figurinha. Procurou pela irmã nos fundos da casa e, desapontada, só encontrou o vazio.

A mãe estava arrumando mantimentos. Zaíta teve medo de olhar para ela. Saiu sem a mãe perceber e bateu no barraco de Dona Fiinha. A irmã não estava ali também. Onde estava Naíta? Ela saiu de casa em casa por todo o beco, perguntando por sua irmã. Ninguém sabia de nada. A cada ausência de informação sua mágoa crescia. O irmão de Zaíta, o que não estava no exército, mas queria seguir carreira, buscava outra forma e local de poder. Tinha um querer bem forte dentro do peito. Queria uma vida que valesse a pena. Uma vida farta, um caminho menos árduo e o bolso não vazio. Queria, pois, arrumar a vida de outra forma. Havia alguns que trabalhavam de outro modo e ficavam ricos. Era só insistir e ter coragem. Desde pequeno, ele vinha acumulando experiências. Corria ágil pelos becos, colhia recados, entregava encomendas, e displicentemente assobiava uma música infantil, som indicativo de que os homens estavam chegando.

Zaíta andava de beco em beco. Chorava. Algumas pessoas conhecidas perguntavam o porquê de ela estar tão longe de casa. A menina se lembrou da mãe. Ia apanhar muito quando voltasse. Naquele momento, ela buscava na memória como o desenho da menina-flor tinha nascido em sua coleção. Por mais que se esforçasse retomando lembranças, não conseguia atinar como a figurinha tinha se tornado sua. 

A mãe de Zaíta guardou rapidamente os poucos mantimentos. Teve sensação de ter perdido algum dinheiro. Impossível, levara a metade do salário e não conseguira comprar quase nada. Estava cansada, mas tinha de aumentar o ganho. A mãe de Zaíta, às vezes, chegava a pensar que o segundo filho tinha razão. Vinha a vontade de aceitar o dinheiro que ele lhe oferecia, mas não queria compactuar com a escolha. Benícia, ao dar por falta das meninas, interrompeu os pensamentos. Não ouvia as vozes das duas. Sentiu certo temor. Veio andando aflita da cozinha e tropeçou nos brinquedos esparramados pelo chão. Que merda! Todos os dias tinha que falar a mesma coisa. Onde as duas haviam se metido? A outra menina, Naíta, que estava no barraco ao lado, escutando os berros da mãe, voltou aflita. Foi recebida com tapas. Saiu chorando para procurar Zaíta. Tinha duas tristezas para contar a sua irmã. Havia perdido uma coisa que Zaíta gostava muito. De manhã tinha apanhado a figurinha debaixo do travesseiro, queria sentir o perfume de perto. E agora não sabia onde estava… A outra era que a mamãe estava brava porque os brinquedos estavam largados no chão.

Nos últimos tempos na favela, os tiroteios aconteciam com frequência e a qualquer hora. Os componentes dos grupos brigavam para garantir seus espaços e freguesias. O irmão de Zaíta liderava o grupo mais novo, entretanto, o mais armado. A área perto de sua casa ele queria só pra si. O barulho seco de balas se misturava à algazarra infantil. As crianças obedeciam à recomendação de não brincarem longe de casa, mas às vezes, se distraíam. Então não experimentavam somente as balas adocicadas que derretiam na boca, mas também aquelas que dissolvem a vida.

Zaíta seguia distraída de sua preocupação. Mais um tiroteio começava. Uma criança, antes de fechar a janela violentamente, fez um sinal para que ela entrasse rápido em um barraco qualquer. Um dos contendores, ao notar a presença da menina, imitou o gesto feito pelo garoto, para que Zaíta procurasse abrigo. Ela procurava somente sua figurinha. Em meio ao tiroteio, a menina ia. Balas, balas e balas desabrocharam como flores malditas, ervas daninhas suspensas no ar. Algumas fizeram círculos no corpo da menina. Daí a um minuto, tudo acabou. Homens armados sumiram pelos becos. Cinco ou seis corpos, como o de Zaíta, jaziam no chão.

A outra menina seguia aflita à procura da irmã para lhe falar da figurinha desaparecida. Como falar também da bonequinha negra destruída?

Os moradores do beco onde havia acontecido o tiroteio ignoravam os outros corpos e recolhiam só o da menina. Naíta demorou um pouco para entender o que havia acontecido.  E, assim que se aproximou da irmã, gritou entre o desespero, a dor, o espanto e o medo: “Zaíta, você esqueceu de guardar os brinquedos!”.



Di Lixão 


Di Lixão abriu os olhos sob a madrugada clara que já se tornava dia. Apalpou um lado do rosto, o dente latejou espalhando a dor por todo o céu da boca. Passou lentamente a língua no canto da gengiva. Sentiu que a bola de pus estava inteira. O companheiro de “quarto” levantou um pouco o corpo e entre o sono olhou espantado, meio adormecido, para ele. Di Lixão encheu rápido a boca de saliva e deu uma cusparada no rosto do menino. O outro, num sobressalto, acordou de seu sono todo instinto de defesa. Di Lixão acompanhou o gesto raivoso do menino, levantando também. Numa fração de segundos recebeu um pontapé nas suas partes baixas.


Abaixou desesperado, segurando os ovos-vida. E foi se encolhendo,. Pela primeira vez, depois de tudo, se lembrou da mãe. Ainda bem que aquela puta tinha morrido! Ele sabia quem havia matado a mulher. Na polícia negou que estivesse por perto. Depois de três ou quatro idas à delegacia, os policiais acabaram por deixá-lo em paz. Ele sabia quem. Que deixassem o homem solto. Não gostava mesmo da mãe. Nenhuma falta ela fazia. Não aguentava a falação dela. Di, vai para a escola! Di, não fala com meus homens. Di, eu nasci aqui, você nasceu aqui, mas dá um jeito de mudar o seu caminho! Puta safada que vivia querendo ensinar a vida para ele. 


As partes de baixo de Di Lixão doíam. O dente continuava a latejar. Será que ele ia morrer? Pensou no colega de quarto. O menino havia sido mais esperto do que ele. Fugira. Já tinha bastante tempo que os dois dividiam aquele espaço. De dia perambulavam pela rua, cada qual no seu ganho. Encontravam-se ali no meio da noite. Às vezes conversavam muito. Tinham quase a mesma. Ele, no mês anterior, num dia qualquer, tinha feito quinze.


O dente de Di Lixão latejava compassadamente, Ele era uma dor só. As dores haviam se encontrado. Doía o dente. Doíam as partes de baixo, Doía o ódio. Sentiu vontade de mijar. Quando ele era pequeno, mijava nas calças. Sua mãe lhe batia sempre por isso. Um dia, ela, numa crise de raiva, ao ver o menino todo ensopado de mijo, puxou a bimbinha dele até quase arrebentar. E dizia para ele aos berros que aquilo era para mijar, para mijar, mijar, mijar...


A vontade de mijar se confundia com a dor. Naquela época, pensava que a bimbinha só servia para mijar, mijar, mijar. Agora não! Tinha crescido, a bimbinha se transformado em pau, cacete. Fazia muito tempo havia descoberto que bimbinha grande, em pé, tinha outro fazer.  Foi também no quarto ao lado do de sua mãe, com uma menina da idade dele, que como ele havia nascido ali, que experimentou o primeiro prazer a dois. Quando acabou tudo, quase morreu de vergonha. Não conseguia parar o mijo. 


O dente latejou fundo no profundo da boca. Dor de dente matava? Não sabia. Sabia que ia morrer. Mas isto também, como a morte da mãe, pouca importância tinha. O sol anunciava o dia quente. Ele, entretanto, tremia de frio. Havia umas duas semanas que aquele tumorzinho na boca, junto ao dente, doía que ele não podia comer quase nada. Fez um esforço. Sentou. Pegou a bimbinha dolorida e fez xixi. Assustou-se. Estava urinando sangue. Passou a língua no canto da boca. O carocinho latejou. Num gesto coragem--desespero levou o dedo em cima da bola de pus e apertou-a contra a gengiva. Cuspiu pus e sangue. Tudo doía. A boca, a bimbinha, a vida... 


Deitou novamente, retomando a posição de feto. Já eram sete horas da manhã. Um transeunte passou e teve a impressão de que o garoto estava morto. Um filete de sangue escorria de sua boca entreaberta. Às nove horas, o rabecão da polícia veio recolher o cadáver. O menino era conhecido ali na área. Tinha a mania de chutar os latões de lixo e por isso ganhara o apelido. Di Lixão havia morrido.


(eu resumindo as histórias)



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