Morella
Desta vez não foi o sobrenatural que dilacerou primeiro. Foi a negligência. O mutismo. A lenta decomposição de um amor não correspondido, embalsamado pela arrogância de um homem que jamais soube ver além do próprio umbral.
Morella era amiga. E foi consumida pelo oblívio.
Com ela, ele contraiu núpcias - mas jamais a acolheu como plena. Elegeu os fragmentos, as parcelas que lhe apraziam amar: o saber que podia plagiar, a devoção que podia devorar. Ela, que se ofertou inteira, findou isolada. Subjugada pela penumbra de um homem que só a reverenciava quando nela podia assinar seu próprio nome.
Ela se desmanchava para caber em seu amor raso; ele se embriagava. Tornou-se devoto do que ele amava - não por amor, mas por ganância. Quando nada mais restou a saquear, só lhe ficou o terror - o mesmo que diz ver nela, mas que talvez fosse só o retrato de sua perversão.
Morella fenecia. Talvez de desalento. Talvez de solidão. Talvez de fadiga por ser a única a adorar, a guiar, a saber, a sofrer. Ele, é claro, também definecera - o orgulho trespassado por não mais reinar sobre ela. E assim, desejou-lhe a morte. Cobiçou-a às ocultas. Como se seu desaparecimento lhe devolvesse o sossego perdido.
Morella se rendeu ao silêncio. Sabia-se rejeitada. Antevia a criança que lhe pulsava no ventre. Compreendera que até na morte podia lançar seu dardo. E assim o fez, com uma profecia que gotejava veneno: "Não se é feliz duas vezes na vida."
A criança veio ao mundo com idêntico nome. Não por mero acaso. Não por desmemoria. Um sussurro - talvez da finada em pessoa - ditará aquela eleição. E como ele se apegou à pequena! Como se intentasse redimir tudo quanto falhara em conceder à genitora. Mas o destino já estava traçado: amou-a demasiado... e precisamente por isso, viu-a escorrer entre os dedos.
Morella ressurgira. Nunca de fato partira. Habitava a pupila da filha. Na voz que lhe congelava a medula. No momento da sagração, quando a menina pronunciou o nome que nenhum mortal lhe revelara. E na cripta - vazia - da mãe, cujo sono eterno sempre fora mentira.
O castigo supremo para quem jamais soube amar: assombrar-se eternamente pelo fantasma do afeto que desdenhou.
Escrito por quem entende que nem todo amor salva.
Transformando dor em linguagem.
Morella (Morella)
Publicado orginalmente em abril de 1835, na revista Southern Literary Messenger
(Escrito por E. A. Poe em abril de 1835)
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