Berenice
Há algo profundamente atroz nos silêncios que se arrastam pelas entrelinhas de Berenice. O conto não se constrói apenas com palavras - ele lateja no que é omitido, no que não se diz, mas se pressente. As frases interrompidas com brutalidade, os pensamentos abandonados à beira do abismo, tudo conspira para um clima de delírio lúcido, em que a razão se desfaz como fumaça. A sensação é de asfixia, de uma mente que se afunda lentamente em sua própria espiral- e leva consigo quem ousa acompanhá-la.
Desde as primeiras linhas, a alternância visceral entre claridade e escuridão, vigor e declínio, esplendor e decomposição, já pressagia a ausência de qualquer equilíbrio possível. A narrativa oscila como um pêndulo entre extremos irreconciliáveis. Como se o autor buscasse demonstrar que toda a beleza traz em si o germe de sua própria ruína -e que o horror não invade de fora, mas brota lendo e inexorável de dentro, quando o olhar se fixa além do que a mente pode suportar.
O protagonista - sem explicações, sem remorso - vive enclausurado em sua própria mente. Um eremita do pensamento, habitante de bibliotecas sombrias onde os tomos poeirentos sussurram verdades mais eloquentes que qualquer voz humana. Quando evoca sua prima, Berenice, surge um contraste cruel: ela, radiante de vida efêmera, enquanto ele se afunda cada vez mais na escuridão de sua própria morbidez.
Mas, como tudo nesse universo implacável, o fulgor de Berenice não persiste. A doença a corrói. O riso, outrora melodioso, deforma-se em mueca. Os olhos, antes cintilante, extinguem-se como velas ao vento. E o que resta de Berenice - aquilo que o atormenta, que consome - são seus dentes. Brancos. Perfeitos. Terrivelmente intactos em meio à ruína.
Sim, os dentes. Alvos imaculados, imutáveis. Uma obsessão nefasta que se alimenta do silêncio de uma mente já consumida pela podridão. A beleza desprende-se do corpo. emancipa-se da carne decadente, e transforma-se em objeto de possessão doentia. O verdadeiro horror não reside na morte - mas no ato sacrílego de transgredir o divino, de obliterar a fronteira entre devoção e delírio, entre anseio e profanação absoluta.
O desfecho - tão súbito e devastador - desvela-se como um golpe de machado: Berenice respirava. O corpo que julgara cadáver, que profanara, que mutilara... ainda palpitava. E a revelação chega com a sutileza de um estilete: através do terror alheio, dos rastros deixados por suas próprias mãos em meio à insanidade. O que se descortina nao é a mera cena de horror - é a exposição total de uma psique que se extraviou de sua própria humanidade.
Daquela que carrega na pele os cortes da leitura.
Escrito por quem mergulha fundo - mesmo quando o fundo assusta.
Berenice (Berenice)
Publicado originalmente em março de 1835, na revista Southern Literary Messenger.
(Escrito por E. A. Poe em 1835.)
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