Era Veneza, mas uma Veneza que havia esquecido de morrer. Uma cidade de sombras que respiravam úmido, onde os gondoleiros não remavam - arrastavam-se como cadáveres boiando em seu próprio rio de melancolia. O ar grudava na pele como um segredo sujo, e os rostos - não eram rostos, mas máscaras vazias escorrendo sob uma luz que fingia ser sol. E então... A queda. Um grito que não veio. Branco contra negro, vida contra nada. A criança desapareceu nas águas sem luta, porque ja estava morta antes de cair. Ninguém se importou. Ninguém merecia se importar. O homem de preto curvou-se como um carrasco cansado. Seus dedos frios pegaram aquilo que já estava perdido. Não salvou. Apenas recolheu, como quem apanha um brinquedo quebrado. Seus olhos vazios não procuraram ajuda... Os malditos sinos tocando errado, marcando horas que não existiam em um mundo que mentia. A criança não chorou. Claro que não! Chorar é para quem ainda acredita. Ninguém perguntou. Ninguém pergunta! E Veneza... Afundava, mas devagar para que todos pudessem sentir cada segundo da agonia.
No palácio a estátua respirava. Mármore que pulsava - era absurdo, era verdade. Seu rosto empalidecia de rubor como uma virgem diante do algoz, como se a vergonha pudesse, afinal, penetrar até os ossos de pedra. Seus dedos retorciam-se no veludo da poltrona - não em terror mas em êxtase perverso na antecipação do que vinha. E então ele entrou. O salvador. O mentiroso. O outro. Ela o tocou então - tarde demais - e seu contato não foi amor. Foi admissão. Foi a rendição final de quem sabe que a redenção jamais virá. Seus lábios de mármore se entreabriam, mas nenhum som saiu - apenas o eco de um segredo que ambos já conheciam, mas fingiam ter esquecido. O ar no palácio cheirava a rosas podres e a vinho derramado em altar profanado. A estátua inclinou a cabeça num gesto que poderia ser resignação - ou convidar ao pecado final. E os espelhos ao redor, todos refletiam apenas o vazio. O toque nunca é só toque - é sempre acusação, é sempre julgamento, é sempre o momento que você percebe que a salvação era apenas outra forma de condenação.
O riso estridente rebentou-lhe nos lábios como vidro partido. Um som seco, ossudo, o rangido de um caixão sendo aberto após anos de silêncio. Riu porque doía lembrar, riu porque esquecer era ainda pior. Aquele rosto afogado nas águas negras... e todavia os quadros nas paredes acusavam-no em sussurros. Retratos. A mulher morta em pose eterna, presa no último suspiro antes da queda, antes do veneno, antes do seu beijo final. Ela estava ali, presa na tela como borboleta espetada, mas também nas palavras estrangeiras que ardiam na página - ele não as compreendia mas seu significado escorria-lhe pelas veias como fogo. Inglês. A língua do poema. A língua dela. Aquela que nunca aprendera, que ela murmurava nos momentos íntimos, que agora lhe gritava das paredes em versos que só podiam ser maldições. Os olhos da pintura seguiam-no por todo o palácio. A boca entreaberta parecia prestes a gritar seu nome. O nome do homem das águas, do salvador, do outro que era ele sem ser ele... E o riso continuava, ecoando, nas salas vazias, misturando-se ao tilintar do veneno no copo de cristal, ao último verso do poema que ninguém havia escrito mas que todos podiam ouvir. A memória é a mais cruel das torturas - nos mostra o que fomos e o que destruímos, e depois nos obriga a rir da piada que nunca entendemos.
O bater na porta ressoou como um tiro no silêncio gordo do palácio. Não era visita. Era a conta chegando. Aquele maldito espelho - devolveu-lhe a verdade que seus olhos já sabiam: o vazio. Apenas o vazio, e o eco de passos que ele mesmo dera em outra vida, de gritos que sua própria boca engolira em algum carnaval passado. O ar cheirava a amêndoas amargas. Mas não do copo. O veneno estava nas cortinas mofadas, no pó dos lustres, na própria carne que lhe cobria os ossos como um traje carnavalesco podre. Ele ergueu as mãos - as mesmas - e viu: a mão que salvou a criança fantasma, a mão que apertou o pescoço de seda, a mão que assinara a carta que ninguém jamais lera. E compreendeu, num clarão de dor fria, que tudo aquilo - a queda, o salvador, o poema, o veneno - não era acidente. Era o preço. Era o castigo. Era o único final possível para uma história escrita em sangue antes mesmo de começar. Quando a porta finalmente se abre, não é a morte que entra - é você que sempre esteve do outro lado, esperando para cobrar o que deve.
O último verso ardia na página como ferida aberta - palavras em língua morta que seu coração decifrava em golpes. Não precisava ler. Já estava escrito em seus ossos. Um suspiro. Um passo. O balé final. Como um sonâmbulo cumprindo seu destino, entregou-se às águas com a delicadeza de um amante. Não houve luta. Já tinha se afogado há muito tempo. A corrente o envolveu como braços que finalmente reconheciam seu dono. Desta vez, não houve criança para salvar. Não houve espectros para testemunhar. Apenas o abraço úmido do esquecimento que sempre prometera. E quando as águas se acalmaram, não restou nem mesmo uma bolha para marcar onde um homem havia estado. Apenas a página em branco. O poema agora completo. E o eco de um riso que nunca existiu. No fim todos cumprem suas promessas - principalmente aquelas que juraram quebrar.
Existir é isso: enxergar fantasmas onde os outros veem carne e osso, e carregar no peito um luto por algo que talvez nunca tenha sido real - um pranto silencioso que ninguém jamais compreenderá.
Comments
Displaying 0 of 0 comments ( View all | Add Comment )