Manuscrito Encontrado Numa Garrafa - Contos do Grotesco e do Arabesco (Edgar Allan Poe)
Um cadáver de tinta flutuando no mar do tempo.
O mar jamais fora líquido — era súmula de almas. Ao cerrarem-se aquelas páginas cadavéricas, uma convicção enraizara-se como verme na medula: certas narrativas não foram escritas para os olhos... mas para dilacerar quem ousa decifrá-las. O manuscrito arrastara-se até suas mãos, como devia ter-se arrastado para outros: numa garrafa que nunca deveria ter rompido a superfície do abismo.
O narrador — um homem como tantos outros — registra com traços cada vez mais convulsos a forma como seu navio foi devorado por algo que não se assemelha a nenhum fenômeno deste mundo. Suas palavras, agora borradas de pânico, descrevem não uma tempestade, mas um vórtice de carne e escuridão, um pesadelo líquido que não obedece às leis dos céus ou dos mares. A última linha do manuscrito arrasta-se pelo papel como um afogado se agarrando à tábua final:
"Não era o vento que rugia — era algo aprendendo a imitá-lo."
A madeira não range — geme como animal degolado. O navio, em seus estertores, parece tentar articular advertências em uma língua que ossos humanos jamais compreenderão. Quanto aos homens a bordo... seria profanação chamá-los de vivos. Arrastam-se, é verdade, mas com a deliberação viscosa de cadáveres que já não recordam o sabor do sol na pele.
A lua naquela noite não era a lua — era uma ferida pulsante no véu do céu, derramando sua luz carmesim sobre um mar que rasgara as leis da criação. As ondas não mais ondulavam: contorciam-se em padrões que trespassavam os olhos como agulhas, traçando geometrias que só poderiam existir nos sonhos febris de um deus louco. E abaixo da superfície, algo imenso e ancestral movia-se — não como quem nada, mas como quem desperta.
O calor não vinha do sol — subia das profundezas, como se o casco do navio roçasse as vísceras de um deus adormecido. O ar, saturado de sal e de algo pior, trazia consigo o mesmo odor que impregna os porões de hospitais marítimos — aqueles lugares onde os condenados são deixados para apodrecer em silêncio.
A tal 'DESCOBERTA' permaneceu — e permanecerá — intacta no manuscrito. O narrador jura tê-la visto, compreendido em algum nível além da razão, mas as palavras, agora inúteis, escapam-lhe como sangue de um ferimento que não pode ser estancado. Talvez não existam vocábulos em língua mortal para nomear aquilo que se arrasta entre as tábuas do navio — se é que 'navio' ainda é a palavra certa para o que quer que seja aquela massa de madeira e dentes.
Eles fitam-no sem ver — se é que ainda há um 'ele' para ser visto. Às vezes, o narrador duvida de sua própria existência, como se fosse um eco de alguém que partiu há muito. O navio, entretanto, prossegue seu rumo cego, arrastando-os para águas que os mapas não ousam nomear — ou que, talvez, tenham apagado a si mesmas para não testemunharem o que lá espera.
A garrafa desce às trevas. Que Deus — se ainda Lhe resta algum ouvido para escutar — tenha piedade da alma que a trouxer de volta à luz.
Agora, quando o vento uiva entre as vigas, ainda escuto o gemido daquela madeira que não era madeira. E nas noites em que a lua sangra, meu olhar foge do mar — pois carrego, nas entranhas, a certeza de que certas histórias não acabam. Elas esperam.
Algumas histórias não acabam — infectam. E quando você menos espera, elas abrem os olhos dentro de você.
Algumas sempre voltam — não pelas ondas ou correntes, mas porque o mar . Elas surgem na praia com a do amanhecer, ainda seladas, mas já de quem as pegará.
Algumas garrafas sempre voltam — não pelas ondas ou correntes, mas porque o mar cansa de guardar segredos. Elas surgem na praia com a maré vermelha do amanhecer, ainda seladas, mas já respirando o nome de quem as pegará.
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