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Category: Dreams and the Supernatural

Celephaïs : HP LOVECRAFT

CELEPHAÏS: O REINO QUE HABITA EM NÓS


 O cavalheiro sem rosto já não era. Londres o devorara, rua após rua pútrida, libra após libra estéril, até que apenas restassem os ossos ressecados de quem um dia conhecera o cheiro do mar na infância. Mas Kuranes — esse nome gravado a faca no cais de um porto que só existia entre o último suspiro da noite e o primeiro arrepio da madrugada, esse nome ainda sangrava tinta viva.


Ele não pereceu. Apenas esqueceu-se de despertar.


Os sonhos belos eram sua única rebelião contra um mundo que insistia em ser pequeno. Escrever sobre torres que tocavam o céu, sobre ruas de mármore cor de pérola, sobre o cheiro do mar que já não existia em Londres, afogada em concreto, mas com a sede intacta — era seu modo de fincar os pés em algum lugar que não desmoronasse. Até que um dia, o precipício. Não um fim, mas uma passagem. O gás roxo não foi veneno, foi convite.



Celephaïs o esperava como um útero espera o feto: já era seu antes mesmo do primeiro respirar. Quando os pesadelos vieram, eram apenas portas giratórias — cada uma mais horrível que a outra, até que ele atravessasse a última e caísse de joelhos na cidade dourada. E que importa se seu corpo real boiou no River Thames? O verdadeiro Kuranes já reinava sobre os telhados de ouro, onde o tempo não era linha, mas círculo. Juventude eterna? Claro. Em Celephaïs, ele era ao mesmo tempo o rei e a criança que corria pelas colinas verdes antes da demolição de seu mundo.


Há quem diga que foi overdose. Há quem diga que foi suicídio. A sabedoria é um mito. O tolo é o único que ri antes do fim. Kuranes simplesmente escolheu ficar. Entre a Londres de papel carbono e a cidade onde até a noite era feita de veludo azul, a decisão foi óbvia. O nome na placa não estava apagado — estava vivo. O gás roxo não o matou, apenas lavou seus olhos da realidade. A realidade é um espelho embaçado. Quem o limpa, se perde.


E agora, quando a lua brilha sobre o mar — A noite é um espelho quebrado — em cada fragmento, um mar diferente de Celephaïs, às vezes se vê um vulto nas muralhas. Toda fortaleza é um cemitério de histórias não contadas. O silêncio é o melhor caixão. Um homem que ri como criança, que governa com mãos leves, cujos sonhos não são mais escritos, mas vividos. O cavalheiro inglês afogou-se. Kuranes, nunca.

 

 *(E no espaço entre duas batidas de coração, onde os sonhadores de nervos à flor da pele sabem que a dor e o êxtase são a mesma cor, ele permanece. Porque alguns de nós precisamos de cidades inteiras para caber o que sentimos. Celephaïs existe. Eu sei. Você sabe.)*


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