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Category: Dreams and the Supernatural

Perda de Ar - Contos do Grotesco e do Arabesco (Edgar Allan Poe)

Perda de Ar.

(1832)




Há textos que não se leem. Há textos que nos leem. Que espreitam sob as nossas rachaduras da pele, sondando-as silenciosamente. Cumprem uma tarefa que jamais fora imposta: - inexistente e complexa - se instalam sem aviso e sem se quer fingir compaixão. Esse é um deles.



Me causou náusea que brota do próprio existir, um mal-estar que nenhum corpo suporta, mas toda alma conhece. Não literária — uma resposta instintiva, como quem sente demais. Um desconforto estranho, como se eu estivesse na mesma sala, ouvindo os pulmões que imploram, mas não recebem. O ar que nem entra para salvar, enquanto todos em volta continuavam a falar. Falar demais. Cada palavra dita por aquele qual a língua sufocara em vida, ao lado do caixão parecia uma pá de terra abafando a última tentativa de existir.



Não há história - há dilaceração. Há um cárcere mental .É um conto é claustrofóbico. capaz de ser sentido, eu senti. Senti tudo.




É um conto é claustrofóbico. Capaz de ser sentido, eu senti. Senti tudo. Cada isolamento encarnado. Cada som abafado. Cada respiração cortada.



Como é possível que alguém viva essa angústia, essa asfixia emocional, sem que ninguém perceba?



O mundo? Seguiu. A cerimônia? Foi feita! Mas ali dentro, uma mente gritava viva demais para morrer, morta demais para ser ouvida.



Essa história traduz em delírio o tormento, o horror da lucidez absoluta, da prisão interior, do corpo silenciado pelo próprio fôlego, enquanto a alma se debate por ajuda. É sobre ver tudo com intensidade fora do comum, desumana, e ainda assim ser tratado como nada. Como ausência , algo que já não serve….



Senti como se fosse  . Não por ser homem. ( mulher! ). Mas por ter sido enterrada viva diversas vezes — por amores, por silêncios, por olhares que se esquivam da dor alheia, por palavras não ditas ou ditas tarde demais. Por não caber. Por sentir demais. Por somente eu me perceber enquanto todos ao redor apenas deslizavam pela vida em estado de ausência.



Há um terror que não grita. Ele ressoa em murmúrios que o mundo se recusa ouvir — preso entre uma voz acorrentada por cruéis arames e o mundo. É um terror que caminha com a desgraça da catalepsia: esse estado suspenso entre a vida e a morte, entre o corpo que parece ceder e a mente com vontade enclausurada  em gritos invisíveis.



Catalepsia. Palavra clínica demais para algo tão pulsante do existir. É o colapso do corpo sem a desistência da alma. É o pavor de ser tocado, movido, chorado — e ainda assim, continuar sentindo tudo.



 Sentir demais e ser desacreditado Identificar a presença que não se mostra,  como ameaça. Oscilar entre o abandono e a raiva com uma intensidade que rasga. Se sentir vivo somente no instante em que o mundo escorrega pelas mãos. Ser tragado pela ideia de que ninguém jamais irá compreender o que você sente.



Imagine: ser posto no berço do não retorno enquanto tua mente sussurra. Ser velado por rostos queridos enquanto tuas íris ainda estão incendiadas por silêncio, por dentro. Ser enterrado com o peito quente, o coração batendo baixinho — mas sem que ninguém seja capaz de ouvi-lo.



Isso acontece de novo. E de novo. E mais vezes. Como se o destino brincasse de simular mortes recusadas, adeuses negados. Penso como o próprio personagem tentando, — inconscientemente — se apagar, mas fosse impedido por forças que nem ele compreendia.



Ele não morre. Ele volta. Retorna sem glória, emerge sem cura, só mais consciente da dor — volta marcado mas não liberto — porque seu inferno não é morrer — é continuar existindo sem que o mundo o reconheça como vivo.



Quantas vezes ele foi lido como cadáver ainda que pulsasse, tomado por morto, mesmo respirando? Quantas vezes esteve presente em sua ausência? Quantas vezes sua dor fora um espetáculo invisível  aos olhos alheios, num palco vazio sem luz alguma? Sua agonia encenada diante de olhos vazios




A pior parte é que nunca saberemos. Porque a morte aqui não é o fim. A morte não chegava — ela acontecia lentamente dentro dele.

É dentro da mente que tudo ferve.



É o desespero calado vestido de silêncio que mais grita. É o pensamento que não para. É a certeza de que ninguém vai ouvir.



Senti ira contida em cada suspiro enquanto lia. E depois senti a cicatriz arder mesmo sem toque. Porque entendi. Porque senti igual. Porque a dúvida foi maior e mais real que a resposta. Porque já estive naquele estado entre o delírio e o desespero. Porque também já fui chamada de exagerada quando tudo dentro de mim ruía em silêncio para não incomodar, estilhava-me por dentro quietamente como gritos que não saíam Porque enterrar algo que ainda pulsa é um crime — e eu fui cúmplice disso comigo mesma por tantos anos.


Como alguém pode respirar sem ar? Como o corpo aguenta tanto tempo, assim, flutuando entre um adeus que não vinha e um retorno que doía? Talvez porque o verdadeiro sufoco não esteja nos pulmões — mas na ausência de escuta, de presença, de alguém que olhe e diga:


 “você ainda está aqui e eu estou com você”


E talvez a mulher soubesse. Talvez ela tenha sentido o estremecer do corpo que ainda vivia. Talvez ela tenha escondido os olhos vermelhos não de tristeza — mas de vergonha. Ou de calma que parece mentira, um descanso com gosto de engano. Há algo ali, nas entrelinhas, que me faz desconfiar dela. Ou talvez eu só veja demais onde não devia. Como sempre.



Não volto mais a este conto. Ele ficou em mim de um jeito que quase ninguém fica. O olhar de alguém que te ama mal. O som de uma porta trancada por fora. Um adeus que ninguém percebera que fora dito.



Sim, é puro horror. Mas é também uma descoberta tão íntima que fere: enquanto há consciência, há luta. Enquanto alguém percebe esse silêncio — como você, como eu — existe ainda alguma forma de salvação.



Porque às vezes a única saída é transformar o desespero em palavra.

E

Palavra é vida, mesmo quando já tenhamo-nos nos dado como mortos.

 




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