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Category: Books and Stories

Auto-Retrato em Breu

Auto-Retrato em Breu.


Karmille não era uma mulher, mas um eco -  talvez algo distorcido que outrora poderia ter sido humano.


Em seus olhos negros como o breu em noite sem lua, guardavam-se segredos que nem ela mesma ousava decifrar. Ouvia-se os aldeões sussurrarem sem disfarce algum que ela nascera sob um eclipse, quando os deuses haviam pestanejado, que nesse breve instante de escuridão divina e demoníaca, algo terrível se aninhara em sua alma.


Ela não sabia sentir - somente devorar. Um colar, um homem, um segredo, uma vida. Tudo devia-lhe de ser em primeiro passo obsessão: depois da desejada posse se via em meio a ruínas. Confusa mas a sensatez não lhe faltava, sabia que era a causa, Quando o objeto de seus maiores desejos finalmente se quebrava - sempre - em suas mãos. Karmille descobria, em um misto de fúria e fascínio, que nunca fora nem seria aquilo que ela realmente quisera.


Num dia de feira, seus dedos esguios, de longas unhas negras, pairavam sobre um punhal de ossos. Tão frio quanto seu toque, sem poder deixar de lado a sensação real de senti-lo, senti-lo sob sua posse. Roubá-lo seria fácil e em sua ingênua e bela - demoníaca doce expressão, carinhosa... para alivia-la do fardo. O plano estava planejado e seria completamente fácil, sentindo-se superior, mais inteligente e habilidosa mesmo em meio a extensa quantidade de seres honestos ao seu redor. A bela e tão fascinante faca, já a pertencia, antes que o ferreiro e seus clientes - dignos e desprovidos de tal maldade - pudessem perceber seus movimentos para dar junto de seu rápido sumiço e mesmo destino de sua faca de ossos maravilhosa e perfeitamente produzida:



 Mas então - o que faria no momento de sua posse? Usaria para enterra-lo no peito do que a cortejara quando o vinha ao caso para depois ignorá-la-á como um animal ferido, desmerecendo-a de respeito e meticulosos cuidados? O ignorante CAVALHEIRO.

Depois de um sorriso hipnotizante. Guardou seu punhal nas pregas de seu negro vestido, sumindo em meio a multidão, deixando para trás o cheiro de sal e ferro - ou seriam lágrimas e sangue. Nem a própria poderia dizer...


Durante aquela noite, diante de seu espelho tão cuidadosamente limpo e bem cuidado, refletindo até os menores detalhes com clareza e nitidez, encenou seu próprio funeral:


 "Aqui jaz Karmille"


Encarando dura e dolorosamente para seu reflexo.


"assassinada por Karmille".


 Seu punhal brilhou reluzente, mas não se moveu. Era assim que era - ou deveria ser - desejando e ansiando pelo crime. Mas não superava seu amor pelo suspense.


Como em todas as longas madrugadas, o cansaço a vencia novamente, como habitual situação.


Deixou a lâmina, brilhante, sobre o lavabo e deitou-se, em meio a pesadelos de um profundo abismo desconhecido, mas que transparecia em suas feições.


Junto do amanhecer, não se havia vestígios de um pequeno se quer brilho de seu punhal - havia desaparecido. E Karmille pela primeira vez em vida experienciou o sentimento de medo, ou algo semelhante.


Agora sentia que havia outra - outra sombra em seus aposentos. Outra ladra de almas. Outra fome que chegaria a ela mais cedo ou mais tarde. Uma fome que ainda não era sua.



E finalmente entendera o verdadeiro horror que logo menos Karmille assassinada à apresentaria sua própria fome.


Nunca estivera sozinha.




 Março / 27 / 2025




Considerações finais:


Karmille não é uma mulher, mas um vazio em forma de gente -  algo que nasceu errado. num eclipse onde os deuses piscaram. E naquela brecha de escuridão, ao invés da alma, coube-lhe apenas uma fome. Uma fome que não sabe nomear-se, pois devora homens, segredos, objetos brilhantes, mas nunca  os digere, apenas os reduz a cinza entre os seus dedos, perplexa com o vazio persistente, intocado como se tudo que roubou fosse feito de sombra. Talvez seja, né?


O punhal de ossos chama atenção mas não por sua beleza exótica, mas por seu parentesco ou familiaridade entre elas - frias, essências sem carne. E um reconhecimento mutuo quando seus dedos o tocam - como um papo:


"você tambem é só estrutura, nem é capaz de sangrar"


- Rouba-lo é fácil, o mundo é imenso de tolos que acreditam na posse, coisas que não se desfazem no primeiro sopro. Quando o punhal some na madrugada o terror verdadeiro surge: alguém - eu diria algo - agiu onde ela só fingiu ação. Alguém ou algo foi mais Karmille do que a própria.


Quanto ao CAVALHEIRO, o cara que corteja-a como uma meretriz e depois descartou como lixo, um trapo velho já usado? Talvez seja o espelho inquebrável para ela. Se viu reduzida a um objeto, uma qualquer - e isso é completamente um absurdo para quem passou a vida inteira como predadora. Cravá-la em si mesma seria mais fácil ainda - não seria a primeira vez que se reduzira a ruínas. Só havia um problema: ela nao consegue! O punhal some, o cavalheiro some e ela fica com eco da pergunta que nunca fez:


"O que eu queria realmente? Ou eu só queria querer?"



 Em frente ao espelho encena seu próprio   funeral "assassinada por Karmille" diz       a lápide inexistente. A Ânima quando        não bem cultivada vira um parasita.     Ao invés de inspirar, corrói. Ela não      tem Ânima. Ela é uma Ânima degenerada     que escapou do inconsciente e vaga por    aí, confundindo posse com poder e    poder com existência. É seu momento de   lucidez  mais cruel. Tem outra fome ali,   e essa sombra é ela mesma - verdadeira   Karmille. A que antes existia do roubo,   a que não tem nome porque nunca foi real       o suficiente para merecer um.


   E no fim, silêncio. Tudo desapareceu, até porque
sem ódio você nao pode matar -     ou ser morto - por algo que nunca              esteve vivo de verdade.


A Ânima não é uma deusa. É um verme insaciavelmente faminto.


  E agora cá estamos... eu, você, este      conto e o vazio que dança entre nós.

 

Aqui jaz quem tentou devorar sua próprias palavras. Mas algumas felizmente, resistem.


 Este conto talvez nao seja sobre Karmille. :)




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