O relógio na parede parece não fazer parte da mesma realidade que eu. Os ponteiros não correm, e sim escorrem, tão devagar que chegam a me dar preguiça.
Todos os dias a mesma coisa: enfermeira Ana traz o café com meia dúzia de comprimidos e mede a minha pressão. Como foi a noite? – ela pergunta com um sorriso de orelha a orelha, sabendo que vou mentir para agradá-la. Tudo bem. – Minto. 7 e 14, marca o relógio mentiroso. Visitas só as dez.
Depois do café, sempre amargo demais e quente de menos, me preparo para já se terem passado horas (quantas mais se passam, menos aqui), mas como sempre, decepções, nem uma horinha para alegrar a minha espera interminável. 7 e 16, marca o relógio mentiroso. Visitas só as dez. Durmo um pouco, para enganá-lo.
Acordo com outra enfermeira, o que é estranho, já estou acostumado com Ana. Mais uma vez ela tira a minha pressão e meu sangue, mais uma vez o olhar de dó, de quem não tem o que fazer pela minha situação. Me pergunto que horas são, mas ela está na frente do relógio mentiroso. Olho para o outro lado e me distraio com um pássaro na janela, um tucano, bicho estranho, não para de me encarar. Sinto que a enfermeira está falando algo, mas não a ouço, o tucano me distrai. Por um momento me lembro do relógio mentiroso e me pergunto que horas são, mas o sol na janela me cega brevemente e não tenho forças para olhar para a enfermeira que não é Ana. Quanto tempo de passou? Sinto uma movimentação, barulhos ao longe, mas não me viro. O sol me cega um pouco mais. O tucano voa para longe. Será que são 10 horas? Vejo a enfermeira Ana, ela me vira de lado e coloca algo abaixo de mim. Um grito se destaca na minha confusão mental: Afasta! – grita Ana. Não enxergo o relógio mentiroso.
hora da morte: 9 e 53 – anuncia a enfermeira Ana.
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