Kinlingor's profile picture

Published by

published
updated

Category: Movies, TV, Celebrities

Detachment - O desapego e a frustração

“E nunca me senti tão profundo e ao mesmo tempo tão alheio de mim e tão presente no mundo”

          Albert Camus


O filme retrata primariamente a vida durante três semanas de um professor substituto que inicia em uma escola extremamente conturbada. É visto logo no início que o cerne de todos os problemas é a família, conjunto que nos acompanha desde o início de nossas vidas, algo que deveria ser a base da nossa formação, que deveria nos servir de guia, mas muitas vezes não é esse o cenário que grande parte das pessoas encontram.

Quando penso em família, o que me vem à cabeça logo é Durkheim. Não digo isso para me “amostrar”, pelo contrário. É triste pensar em família e logo vir na cabeça uma questão sociológica, não amor, nem um conjunto que propague isso. Enfim, a ideia de família, para Durkheim, é um corpo social ligado a partir da solidariedade entre os indivíduos presentes no meio em que se tem essa consideração. É a instituição básica encarregada de formar um indivíduo, o primeiro contato que se tem com a sociedade e seus efeitos e causas, é o início do desenvolvimento de um caráter; um fato social, não biológico.

Inserindo isso no filme, há, decerto, um grande problema com a formação de famílias, não só no Brasil, mas no mundo. Se este é o nosso cerne, onde começamos, nossa linha de partida e o fator em que tudo de nossa vida será baseado, caso haja discrepância na forma em que somos criados, nas situações às quais somos impostos por estes, a vida será baseada em puro caos. É justamente o observado no filme, nas situações que nos são mostradas e que vemos todos os dias; digo vemos, não observamos, se observarmos como nossos companheiros são, vamos ver realmente a mensagem que o filme do qual falamos discute conosco.


A partir deste momento haverá spoilers do que acontece na obra. Por favor, caso você não tenha assistido, insisto que assista. Caso já tenha visto, veja de novo. Vale a pena.


Ao percebermos logo ao fim do filme a história completa de vida do nosso protagonista, o professor Henry, notamos que há conturbação em sua vida desde sua infância e que esse problema afeta frequentemente sua realidade. O pesar que lhe ocorre faz com que haja em si o desejo por evitar que pessoas em uma mesma situação acabem tendo o mesmo fim que ele. Acredito que isso seja dito muitas vezes no filme usando metáforas, pequenos pontos que não notamos, ou que até sejam nítidos demais para nossos olhos, como os momentos em que os professores desejam “não ser professores” ou dizem que isso mudou-lhes o rumo da vida por inteiro. Não quero dizer que o filme deixe de passar essa mensagem. Observo firmemente que ele realmente faz uma crítica à forma que o corpo estudantil é visto e tratado, com desdém, mesmo cumprindo papeis que não são reservados a eles. Isso é frustrante no filme e na vida real. Pessoas que mal conhecemos levam as consequências de termos um passado complexo e, por hábito da sociedade, são vistas como as encarregadas a nos ajudarem com tais problemas, sendo que os que deveriam realmente estar evitando e/ou auxiliando com essas questões são aqueles que justamente as causam.

O desejo de Henry e o seu “complexo de salvador” acabam levando-o a enfrentar problemas, inclusive maus olhares já que, como ele busca ajudar principalmente adolescentes que passam por algum tipo de dificuldade familiar, o homem muitas vezes têm suas intenções confundidas. A confusão criada a partir de uma percepção de um falso cenário faz com que ele reviva grandes traumas de sua vida e isso o leva a medidas extremas que ele não gostaria de realmente tomar. Sua questão relacionada à mãe, ao suicídio dela e aos abusos que o avô cometia com a mesma diante de sua presença e da proteção da dela sobre o homem, nosso protagonista, são fardos que ele revive constantemente e carrega por sua vida inteira. Ele vê a si refletido nas garotas com quem conversa, que também tem problemas para se inserir na sociedade devido à sua falta de estrutura familiar e enfrentam desvalorização, principalmente por serem mulheres.

Também existem cenas criticando a maneira com que as mulheres são vistas na sociedade. Henry critica que desde jovens os homens são influenciados a ver mulheres puramente como material, para se usar e descartar, como “vagabundas”, um puro objeto para satisfazê-los. Isso se dá ao perceber a realidade em que a garota a qual ele abrigou, Erika, vivia e também reflete muito na percepção que ele obteve sobre a visão que seu avô tinha da mãe.


A reflexão sobre o passado e os constantes flashbacks me lembraram muito as aulas sobre as ideias do Sartre, que as pessoas revivem o passado desejando por ele, pois supostamente o tempo que elas revivem foi o melhor de suas vidas, na percepção da atualidade, trazendo uma insatisfação permanente. Entretanto, eu não acho que realmente seja por isso que a maioria das pessoas reviva tanto o que já passou. Revisitar o passado não é o desejo por ele, nem querer viver ele. É querer rever suas memórias nas piores coisas que podem ter te acontecido e desejar especificamente um passado novo, um cenário diferente. É justamente a busca por uma reformulação de um evento que ocorreu, mas que não foi agradável. Ninguém deseja o passado de verdade, só queremos o que imaginamos dele, mesmo que tão diferente do que de fato aconteceu e é isso que o personagem parece fazer durante o filme. Obviamente ele projeta o que já se foi não porque deseja que estivesse naquela situação no momento, mas sim como uma forma de justificar a razão de tudo estar tão ruim. Dessa forma, eu vejo que revirar o passado é uma forma de consolo para não só justificar o presente, mas também confirmar que nem tudo antes era bom e que de nada adianta buscar pela felicidade em algo que já passou quando sua vida presente está diante dos olhos.


A dificuldade em lidar com as próprias questões internas e o sentimento de vazio e transparência dos personagens diante não somente do cenário trabalhista, mas também dentro de suas próprias casas é algo muito explorado. Os personagens sempre tentam escapar da rotineira solidão em que vivem e se frustram de forma absurda por não conseguirem mudar as coisas. Não importa o quanto eles tentem, eles não podem substituir a estrutura familiar, eles não podem mudá-la, não são capazes de influenciar de fato os alunos para eles engajarem em seus estudos, não podem mudar suas visões de mundo se eles não querem mudar. A frustração com o mundo e a visão que foi imposta às novas gerações de que “tudo é tão fácil” é presente até hoje na sociedade, principalmente com a presença das redes sociais, que faz parecer com que existe uma realidade perfeita e que tudo é um mar de rosas e que todos que quiserem podem chegar longe, quando na realidade não é assim (o famoso discurso meritocrático que tanto assombra a sociedade).

O sentimento de impotência diante de alunos alheios ao mundo ao seu redor e, pior ainda, o saber que é uma estrutura, que mudar isso é basicamente impossível é a chave do filme. A sensibilidade em frente ao estresse causado por saber da existência de tantas situações ruins e injustas irrita tanto aos personagens quanto ao público, que sente a necessidade de tentar a todo custo mudar a forma do meio em que nos inserimos, mas isso não acontece. Henry é o maior carregador desse sentimento e quando ele chega perto de mudar algo, precisa sair da escola. Nisso, podemos prever outra metáfora. Quando estamos perto de alguma mudança na maneira em que a sociedade se dispõe, o sistema ou algo relacionado a ele sempre nos barra. Pode ser realmente o sistema no qual somos inseridos, ou pode ser a culpa interna e a vontade de não frustrá-lo, o que é compreensível com toda a manipulação que nos é feita desde que somos seres sociais.


"Alguns de nós acreditam que podem fazer a diferença, e algumas vezes nos levantamos e percebemos que falhamos."

"Alguns de nós acreditam que podem fazer a diferença, e algumas vezes nos levantamos e percebemos que falhamos."


Outra coisa interessante que podemos notar é a distância das pessoas em relação a coisas físicas e duradouras. O professor Henry diz que é professor substituto justamente para não criar laços com os alunos, não se conformar com seus problemas. Isso é uma ideia muito líquida e lembra-me muito de Bauman. Diversas cenas mostram características descritas pelo pensador diante de suas ideias de Modernidade Líquida. O desejo de fluidez nas relações sociais, laços interpessoais instáveis, individualismo e inconsistência. Uma das personagens até mesmo diz para Henry que deseja algo sólido, algo fixo e que está cansada de tudo ser tão passageiro. Esse individualismo tem marca até nos dias de hoje e eu considero que possa ter se agravado ainda mais com o decorrer da pandemia.

As relações familiares visitadas por todo o enredo são baseadas justamente nisso. Nessa liquidez, instabilidade e individualismo, onde os pais não se importam com os filhos e esperam que a escola desempenhe o trabalho de criá-los, fazendo com que haja um abismo presente neles e em sua relação para com o mundo.


Erika é responsável pelo personagem perceber que sendo individualista, o mundo de fato será da forma com que ele vê. Cinzento. Conhecê-la e fazer conexão com seus alunos é uma forma de afirmação que ele existe, ele está ali, ele não é invisível. A responsabilidade de perder essa transparência e abrir-se ao mundo, às pessoas, deixar de ter relações tão líquidas e complexas de se compreender pois não há como entender algo que passa tão rápido é importantíssima na formação do personagem. Henry enxerga a si após ver o outro, ver que se ele não se ajudasse primeiro, como ele sequer poderia ajudar outras pessoas? A indiferença e a desconexão das pessoas umas com as outras é o caminho para seu definhamento e para a incompreensão do indivíduo sobre si mesmo. 

Como o próprio filme nos diz: “É fácil ser indiferente a tudo, se importar com as coisas que é difícil”




0 Kudos

Comments

Displaying 0 of 0 comments ( View all | Add Comment )