Como ousa um ser tão meigo, pequenino e desvairado, pôr-se aos pés da existência e dela haurir a dor? Uma folha ainda verde, à beira da própria vida e mesmo assim, em fecundo convicta de que pode domar os ventos do caudaloso inverno. Esse é o artista: a flor que nega a suma mortalidade, amando-a como de mesmo modo não amam os rios aos mares; as aves às copas de toda árvore; a aurora como ao orvaho. Ele ama sua finitude, reconhece-a, abraça suas curvas como que em um erotismo aureliano, um beijo que não abre margens para as lascívias do desejo, senão que afaga, em suave gesto, as tranças do infinito. Faz do túmulo próprio e inescapável, uma musa sempre jovem, sempre florida de graças; objeto de contemplação tão estimado que transcende a si, torna-se sujeito. Esse é o artista. Apaixonadamente entregue à própria morte.
Por sorte o leitor um dia há de encontrá-lo, talvez em miúdo silêncio, quase imperceptível, no ônibus ao seu lado assentado. Fitá-lo-á rapidamente, dele não colherá uma importância sequer, um vestígio de florilégio nem ao menos uma epifania. Isto aos vulgares ele jamais revela. Mas atente-se, caríssimo, ao reflexo distante de seu olhar, contemplando uma esfera secreta, além do brutalismo das cidades ou do arbor do campo. Um olhar, quiçá de saudades, estimando sonhos que só pela arte pode degustar. Não bata à porta de sua alma, adentre-a, não seja tímido. As belezas de um artista não o pertencem, nunca o pertenceram. São luzes divinas cuja missão do artista é gravá-las em seu próprio coração, ser fiel, arrancá-lo, cortá-lo em mil pedaços e semear onde quer que vá, onde houver terreno fértil.
O artista. Sempre atento ao tempo e dele arfando escárnios. Que importa se o tempo deixar de correr? Se dele tiver saldo grande, médio ou ínfimo? O tempo lhe é somente tela, janela de multicores vitrais donde é mister somente, ao outro lado, vislumbrar a Eternidade, última Esfinge. Vendo-a assim, nua e catártica, não resta-lhe mais nada senão ir ao seu encontro além-parnaso; trespassar seu ventre, desposá-la, excitá-la com os flertes do vazio e da loucura; pô-la majestosa e sonolenta, feliz e contentada sobre seu colo, para sempre transmutada na flor mais bela de seu jardim prestigiado. Eis aí a consumação da alma criativa: unir-se inteiro à eternidade, dar-lhe a vida e nela semear toda a sua mortalidade, coroá-la de delícias surreais, transcender a vida de todas as vidas. O resultado? A cor mais pura, a música mais altiva, o verso mais frondoso e a luz mais lusídia, fadadas, todas elas, a jazerem para sempre esquecidas.
Apenas o silêncio há de sorver a doçura desse beijo: A arte que provém do amor de um verdadeiro artista.

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